Apreensão
textual
Resumo O texto a seguir é resultado do seminário
realizado na disciplina O lugar do Narrativo no discurso visual, nos
dias 2 e 16 de abril de 2003. Trata-se de uma conceituação geral
acerca dos elementos da narrativa, a partir do texto Tipos textuais,
de João Batista Cardoso (p. 3-5). Nele são apresentados os
conceitos do autor para os seguintes elementos: narrador, foco
narrativo, tempo na narrativa, espaço, tema, assunto, mensagem,
personagem e estrutura da narrativa.
O autor introduz o tema a ser abordado utilizando
um fragmento do livro de Machado de Assis, Memórias póstumas de
Brás Cubas, que relata o desastre do qual a personagem central
/narrador fora vítima, quando o jumento em que vinha montado empacou
e quase o arremessou fora da sela, tendo ficado preso apenas pelo pé
esquerdo. Em seguida, o animal iria disparar pela estrada não fosse
um almocrevei que passava e o segurou. Surge um conflito para a
personagem central, sobre a recompensa que destinaria aquele
almocreve “que salvou sua vida” e, após a decisão tomada, o
relato termina com a sua partida, cogitando se realmente deveria ter
recompensado o almocreve com uma moeda da prata ou fora perdulário
em sua atitude.
A partir desta breve narrativa, Cardoso afirma
ser a capacidade de narração intrínseca ao ser humano. Tanto o
homem civilizado quanto o primitivo sempre criaram suas narrativas de
fatos do cotidiano ou transformaram fenômenos da natureza em lendas,
histórias e contos.
Todos esses eventos relatados pelo homem
acontecem em sucessão num determinado espaço de tempo. Desta forma,
o tempo, que também é intrínseco às relações humanas, se torna
elemento indispensável à construção das narrativas.
O gráfico abaixo sistematiza a noção de que um
evento pode ser diluído em uma série de acontecimentos marginais,
que evoluem desde o começo da narrativa. Considerando o exemplo do
autor: “a história de um acidente é um acontecimento (conjunto
universo) que se dilui em subconjuntos que vão evoluindo desde que
os carros se chocam num cruzamento” (Cardoso, 2001, p. 35).
Os textos narrativos literários são
classificáveis em diversos gêneros. Os clássicos são: a epopéia
, poema épico ou longa narrativa em prosa que exalta os feitos
memoráveis de um herói histórico ou lendário; o romance, prosa
mais ou menos longa, na qual se narram fatos imaginário, cujo
interesse pode estar no relato de aventuras, no estudo de costumes ou
tipos psicológicos, na crítica social etc; o drama, forma ou
narrativa em que se figura ou imita a ação direta dos indivíduos,
texto escrito para ser encenado. Podem ser citados outros gêneros,
derivados destes, como: a tragédia, a comédia, a canção, o conto.
A estrutura da narrativa se constitui da seguinte
forma: os fatos são apresentados numa seqüência, localizam-se num
espaço e numa época (identificáveis no texto) e desses
acontecimentos (fatos) participam personagens. Esta sucessão de
fatos é denominada trama, ação ou enredo da narrativa.
Segundo Zoleva Carvalho Felizardo, quando se
trata de uma narrativa clássica, pode-se notar um certo rigor em
alguns dos seus elementos. Existe neste caso uma imposição quanto à
sua unidade de ação (enredo), onde uma situação centraliza todos
os acontecimentos da história; em uma unidade temporal,
especialmente no caso do conto, a história se desenvolve em curtos
intervalos de tempo; em uma unidade de lugar, a ação acontece em um
âmbito geográfico e social restrito.
Em comparação à narrativa clássica, a autora
expõe que a narrativa moderna e/ou contemporânea rompe a unidade
existente naquela estrutura. E, por esta razão, quando o escritor
atribui diferentes ações em diferentes espaços a personagens
multifacetadas, esta forma de narrativa transcende os limites do
tempo e lugar, Cardoso afirma que fazem parte da narrativa os
seguintes elementos: enredo (ação ou trama), personagens, tempo,
espaço, ambiente, narrador.
Narrador Antes de tomar-se o estudo sobre
definição do papel do narrador como um dos elementos da narrativa,
cabe esclarecer a diferença entre os termos narração e
narratividade. Narração caracteriza a emissão do narrador. No
filme documentário, como exemplo, isto se dá por meio da voz em off
ao explicar o que está sendo mostrado na seqüência. Em oposição,
temos na literatura o gênero drama, onde não há a figura do
narrador e, portanto, a ação se explica pelas próprias
personagens, nestes casos não existe narração, mas trata-se também
de um gênero narrativo. Pelo termo narratividade entende-se a
característica dos textos que são narrativos, ou seja, trata-se do
potencial narrativo do texto.
“O narrador é o elemento textual que conta a
história” (Cardoso, 2001, p.36), por estas palavras o autor afirma
o papel do narrador enquanto elemento responsável pela interação
com o leitor no processo de recepção. Convém ressaltar que não se
deve aceitar o narrador como sendo o autor, uma vez que ele é um
elemento textual, e portanto uma criação lingüística do autor. O
narrador somente existirá no texto, ele narra a partir do interior
do relato, enquanto o autor escreve, desenvolve uma atividade externa
em relação ao texto.
Segundo Barthes, “...o autor (material) de uma
narrativa não se pode confundir com o narrador dessa mesma
narrativa...”, “Distinção tanto mais necessária, à escala que
nos ocupa, quanto, historicamente, uma massa considerável de
narrativas não tem autor (narrativas orais, contos populares etc.)”
(Barthes,198?, p.121), mas apesar da ausência de uma autoria
reconhecida nessas narrativas a figura do narrador é que, muitas
vezes, conduz a história.
Embora exista uma clara distinção entre
narrador e autor, em certos momentos na literatura, alguns autores se
inserem nas próprias narrativas e dialogam diretamente com seus
leitores por meio de sentenças como “Meu caro leitor...” ou “O
que o leitor está pensando...”, propondo uma postura reflexiva
durante o processo de recepção. Shakespeare é um exemplo de autor
em cujas peças a relação autor/receptor é bastante clara (ver:
STAM, Robert, Reflexivity in Film and Literature, New York: Columbia
University Press, 1992).
Outro exemplo dessa “intromissão” do autor é
o livro de Laurence Sterne, em The life and opinions of Tristram
Shandy, onde, utilizando recursos literários e de diagramação
(páginas “cegas”, caracteres como **** ou ——— ) o autor
convida o leitor a intervir na narrativa com suas opiniões e
pensamentos.
No âmbito do design e sua intervenção na
literatura, o designer torna-se capaz de fazer uso dos próprios
códigos – espaços vazios, ritmo da mancha gráfica, escolha
tipográfica etc. – estabelecendo essas relações entre a obra e
leitor e, deste modo, atuando na geração de sentidos da própria
narrativa.
Nos textos em que a história se desenvolve por
meio das falas dos próprios personagens, não existe a necessidade
de um narrador, como por exemplo: o drama. Narrativas que se
desenvolvem sem a presença de um narrador são encontradas no teatro
e também no cinema. Às vezes, em ambos os casos poderá surgir a
necessidade, num ou em outro momento, de uma ligatura que aparecerá
como a “voz” de um narrador.
No teatro esta ligatura pode ser representada por
uma mudança de cenário, assistida pela platéia.
No cinema, ocorre onde a seqüência não é
suficiente para expor o que a narrativa pretende e, nestes casos, são
utilizadas informações adicionais que situam o leitor num novo
ambiente ou numa mudança temporal na história. Estas “legendas”
ou letreiros apresentam, por exemplo, o ano e/ou o lugar onde a ação
está sendo desenvolvida. No filme As horas (The hours), de Stephen
Daldry (2002), são utilizadas “legendas” indicando a troca de
cenas das três personagens que participam da narrativa em seus
diferentes tempos e espaços – arredores de Londres, 1923 (Virginia
Woof – Nicole Kidman); final do século 2000 (Clarissa Vaughan –
Maryl Streep); Los Angeles, 1951 (Mrs. Brown – Julianne Moore).
Deste modo, o diretor apresenta as personagens e, simultaneamente,
cenários com suas identificações geográficas e temporais. A
partir do momento em que o espectador reconhece os três tempos
históricos da narrativa, os letreiros são retirados e a compreensão
se faz pelas próprias personagens, cenários e ações.
No sistema de comunicação, isso equivaleria aos
“reforços de sentido” que podem corrigir a distorção em um
discurso. Um desses “reforços” pode ser a redundância, esta
pode existir no trabalho do design a partir da presença de elementos
que, em vez de agregarem uma nova informação, fortalecem o sentido
de um dado já apresentado. Ex.: nos sistemas de sinais luminosos, o
reforço se dá com a repetição e simetria no uso de semáforos no
alto e também nas laterais esquerda e direita da via urbana. A
informação, neste caso, é a mesma – vermelho: pare – mas
diante desta redundância tem-se uma garantia maior da compreensão
da mensagem. Outro reforço de sentido, muito utilizado na ilustração
e animação é a ênfase, o exagero de algumas características,
olhos maiores na face das personagens, ou o apagamento de outras
privilegiando aquelas que se deseja ressaltar.
Foco narrativo O narrador pode contar uma
história tanto do ponto de vista de quem assiste, quanto daquele que
participa da narrativa. Ao participar dos fatos, o narrador
desempenha, também, uma ação específica na narrativa: “Decorre
daí a distinção tradicional entre narrador na primeira pessoa
(aquele que exerce uma função na ação) a narrador na terceira
pessoa (aquele cuja função se restringe à interpretação dos
fatos)” (Cardoso, 2001, p. 37).
No texto em primeira pessoa, o narrador é também
uma personagem. É comum a utilização do narrador na condição de
protagonista da narrativa, como um recurso “que revela-se
especialmente adequado para o devassamento da interioridade da
personagem nuclear do romance, uma vez que é essa mesma personagem
quem narra os acontecimentos e que a si própria de desnuda”
(Silva, in: Cardoso, 2001, p. 37) O quadro abaixo sistematiza as
diferentes atuações do narrador:
Cardoso, expõe dois exemplos muito claros para
ilustrar esta estrutura: “Vai então, empacou o jumento em que eu
vinha montado; fustiguei-o, ele deu dois corcovos, depois mais três,
enfim mais um, que me sacudiu fora da sela,...” “mas um
almocreve, que ali estava, acudiu a tempo de lhe pegar na rédea e
detê-lo, não sem esforço nem perigo. Dominado o bruto,
desvencilhei-me do estribo e pus-me de pé.” (Machado de Assis,
Memórias Póstuma de Brás Cubas, 1996, p.40-41).
Não há dúvida para o leitor de que este
fragmento do texto encontra-se em primeira pessoa, uso que ao longo
da narrativa servirá de recurso para que ele conheça de forma
irrestrita os pensamentos da personagem/narrador.
O autor também estabelece a diferença dessa
atuação em relação ao narrador em terceira pessoa apresentando o
seguinte exemplo:
“Os criados serviram o café. E como havia já
três longas que estavam à mesa, todos se ergueram, acabando os
charutos, conversando na animação viva que dera o Champagne. A
sala, de teto baixo (...) enchera-se de um calor pesado.” “Carlos
e Craft, que abafavam foram respirar para a varanda; e aí recomeçou
logo, naquela comunidade de gostos que os começava a ligar, a
conversa da Rua do Alecrim sobre a bela coleção dos Olivais.”
(Eça de Queiroz, Os Maias, 1996, p. 106).
Entretanto, nem sempre o foco narrativo se
apresenta ao leitor de modo bem definido. Roland Barthes, em A
aventura Semiológica, define o código do narrador em dois sistema
de signos: pessoal (eu) e a-pessoal (ele). Segundo Barthes, em
algumas narrativas ou episódios, podem existir textos escritos na
terceira pessoa (ele), quando na verdade se trata de uma ação na
primeira pessoa: “toda parte inicial de Goldfinger, embora escrita
na terceira pessoa, é de fato, dita por James Bond; para que a
instância mude, é necessário que o rewriting (substituindo ele por
eu) seja impossível; assim a frase: ‘avistou um homem de uns
cinqüenta anos, de porte ainda jovem, etc.’ é perfeitamente
pessoal, apesar do ele (‘Eu, James Bond, avistei, etc.’), mas o
enunciado narrativo ‘o tilintar do gelo contra o vidro pareceu
despertar em Bond uma brusca inspiração’ não pode ser pessoal,
por causa do verbo parecer, que se torna signo de a-pessoal”.
(Barthes, 198?, p.120).
Tempo “A relação entre o tempo e a
narratividade indica que os eventos são marcados por estados que se
transformam sucessivamente” (Cardoso, 2001, p.35). Segundo o autor,
os eventos que constituem o texto narrativo passam de um estado a
outro, são acontecimentos que sucedem no tempo. Enquanto, num texto
descritivo a ação se localiza no espaço. Mas, esta polaridade não
existe de modo tão limitado e ocorre que: “Na verdade, a
descrição, a narração e a dissertação articulam-se
freqüentemente, em um único texto, havendo, no entanto a
prevalência de uma delas.” (Cardoso, 2001, p.38).
“O” desse acontecimento principal torna-se um
quadro à parte e por si traduz uma descrição. Para Cardoso, isto
pode ser compreendido do seguinte modo: “...quando se faz uma
comparação com um recurso da indústria cinematográfica que
permite parar a imagem num ponto qualquer da cena. Ao parar a imagem,
o que se vê é um quadro inserto no contexto mais amplo da
narrativa. Além disso, os eventos passam-se num espaço que deve ser
caracterizado, isto é, descrito.” (Cardoso, 2001, p.38)
A partir de citação da obra de Vitor Manuel Silva, o autor
apresenta uma subdivisão do tempo da narrativa nos cinco tempos
definidos abaixo:
• tempo histórico – tempo histórico que a
História se refere; “é o tempo maior que abrange todos os
acontecimentos humanos no período em que ocorrem os fatos narrados”.
Nem sempre o tempo histórico de uma narrativa coincide com o seu
tempo concreto. Um exemplo a ser citado é o livro O nome da rosa, de
Umberto Eco: apesar do romance narrar fatos ocorridos numa abadia
italiana, no séc. XIV, foi escrito em 1980, sendo o séc.X,
portanto, seu tempo concreto. Em muitas narrativas consegue-se
identificar o momento histórico a partir de elementos do
texto/imagem que dão “dicas” sobre ele (mesmo que não se
apresente uma data específica ao leitor/espectador).
• tempo-cronologia – tempo que transcorre na
ordem dos fatos (começo Æ fim); “chama-se cronológico porque é
mensurável em dias, meses, anos, séculos”. A relação entre o
tempo histórico e o tempo-cronologia pode ser observada no filme As
horas, onde as ações se desenvolvem em tempos históricos distintos
(1923, 2000 e 1951), mas, possuem o mesmo tempo cronológico: um dia
na vida das três personagens. A saga, por exemplo, é uma narrativa
de grande tempo cronológico.
• tempo concreto – momento específico onde
ocorrem os fatos; “age sobre os indivíduos que estão fora do
texto” (autor, leitor). É o tempo que atua na criação narrativa
e no processo de fruição; nesse universo dos indivíduos concretos,
no qual o tempo concreto atua, também está presente o leitor.
• tempo como durée – tempo que modela e
transforma os agentes; “atua sobre os personagens”, enquanto o
tempo concreto atua nos indivíduos. Tempo de duração do evento e
pode ser demostrado por um movimento na cena. Um exemplo, citado
durante o seminário, teria sido apresentado por Umberto Eco no Pós
escrito ao Romance O nome da rosa, onde este autor explica que
construiu toda a narrativa calculando o tempo de leitura a partir da
planta baixa da Abadia. Deste modo, Eco dá a dica do tempo na
narrativa, ou seja, de quanto tempo está durando o desenvolvimento
da cena.
O tempo como durée não deve ser confundido com
o “timing” que seria uma duração que cada autor utiliza para o
seu relato e que, portanto, estaria mais bem caracterizado como um
estilo de cada autor e de cada narrativa. Ex: o “timing” do
conto, o “timing” do romance, o “timing” da piada.
• tempo psicológico – tempo que apresenta uma
ordem submetida à vontade do narrador e dos personagens sem qualquer
coerência cronológica. A partir da consciência do narrador, propõe
“sobretudo uma experiência do tempo tratado como objeto de
consciência, incrustado numa memória” (Gancho, in Cardoso, 2001).
No filme Spider, de David Cronenberg (2002), a maior parte das ações
que envolvem a personagem central não é passível de identificação
cronológica, o tempo na narrativa se desenvolve por meio de sua
(dele) própria consciência.
Segundo Paul Ricoeur: “há um Tempo Mítico, ‘a
priori’. Tempo das colheitas, das luas, das mares. Tempo que existe
antes de pensarmos nele”. Entretanto, foi preciso dimensionar o
tempo e assim criou-se o tempo do calendário. Este se constrói em
única linha reta (uma direção), um ponto de partida (a data 0) e
dois sentidos ( + e - ). Os fatos reais vivem sob este domínio,
sendo dimensionados em passado, presente e futuro. Nele existem os
tempos históricos, datas, períodos, contextos sociais, políticos,
etc. Pode-se imaginar, então, vários conjuntos de tempos históricos
inseridos num conjunto maior, o tempo do calendário.
Inserido no tempo histórico existe um novo
conjunto, o do tempo concreto de uma pessoa, que pode estar vendo um
filme, lendo um livro ou passeando por um site. Enfim, esta pessoa,
está inserida em um tempo concreto, dentro de um tempo histórico,
“assistindo” a uma narrativa.
A partir das considerações de Ricoeur,
compreende-se o tempo dureé como tempo de duração.
Tempo de duração de uma personagem, que não
tem tempo concreto, mas sim um tempo existente dentro da história,
ao findar a narrativa ele finda também. Um exemplo da existência
das personagens num tempo dureé pode ser observado em O ano passado
em Marienbad (1961), de Alain Resnais, onde as personagens existem
apenas dentro daquela narrativa, são “objetos” destinados a ela.
Suas vidas não existem nos momentos antes ou depois da narrativa, as
suas existências se restringem ao instante em que dura a projeção
na tela.
Quanto ao tempo psicológico, para Ricoeur ele
não é nem real, nem fantasia – passa pelo sonho, ele transcende o
calendário, chega ao tempo mítico. Não conseguimos dimensionar
nosso pensamento, nossos anseios que hora parecem tão longos apesar
de no tempo real não passarem de um segundo, apenas.
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