segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Apreensão textual

Apreensão textual
Resumo O texto a seguir é resultado do seminário realizado na disciplina O lugar do Narrativo no discurso visual, nos dias 2 e 16 de abril de 2003. Trata-se de uma conceituação geral acerca dos elementos da narrativa, a partir do texto Tipos textuais, de João Batista Cardoso (p. 3-5). Nele são apresentados os conceitos do autor para os seguintes elementos: narrador, foco narrativo, tempo na narrativa, espaço, tema, assunto, mensagem, personagem e estrutura da narrativa.

Tipos textuais

O autor introduz o tema a ser abordado utilizando um fragmento do livro de Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas, que relata o desastre do qual a personagem central /narrador fora vítima, quando o jumento em que vinha montado empacou e quase o arremessou fora da sela, tendo ficado preso apenas pelo pé esquerdo. Em seguida, o animal iria disparar pela estrada não fosse um almocrevei que passava e o segurou. Surge um conflito para a personagem central, sobre a recompensa que destinaria aquele almocreve “que salvou sua vida” e, após a decisão tomada, o relato termina com a sua partida, cogitando se realmente deveria ter recompensado o almocreve com uma moeda da prata ou fora perdulário em sua atitude.

A partir desta breve narrativa, Cardoso afirma ser a capacidade de narração intrínseca ao ser humano. Tanto o homem civilizado quanto o primitivo sempre criaram suas narrativas de fatos do cotidiano ou transformaram fenômenos da natureza em lendas, histórias e contos.

Todos esses eventos relatados pelo homem acontecem em sucessão num determinado espaço de tempo. Desta forma, o tempo, que também é intrínseco às relações humanas, se torna elemento indispensável à construção das narrativas.

O gráfico abaixo sistematiza a noção de que um evento pode ser diluído em uma série de acontecimentos marginais, que evoluem desde o começo da narrativa. Considerando o exemplo do autor: “a história de um acidente é um acontecimento (conjunto universo) que se dilui em subconjuntos que vão evoluindo desde que os carros se chocam num cruzamento” (Cardoso, 2001, p. 35).

Os textos narrativos literários são classificáveis em diversos gêneros. Os clássicos são: a epopéia , poema épico ou longa narrativa em prosa que exalta os feitos memoráveis de um herói histórico ou lendário; o romance, prosa mais ou menos longa, na qual se narram fatos imaginário, cujo interesse pode estar no relato de aventuras, no estudo de costumes ou tipos psicológicos, na crítica social etc; o drama, forma ou narrativa em que se figura ou imita a ação direta dos indivíduos, texto escrito para ser encenado. Podem ser citados outros gêneros, derivados destes, como: a tragédia, a comédia, a canção, o conto.

A estrutura da narrativa se constitui da seguinte forma: os fatos são apresentados numa seqüência, localizam-se num espaço e numa época (identificáveis no texto) e desses acontecimentos (fatos) participam personagens. Esta sucessão de fatos é denominada trama, ação ou enredo da narrativa.
Segundo Zoleva Carvalho Felizardo, quando se trata de uma narrativa clássica, pode-se notar um certo rigor em alguns dos seus elementos. Existe neste caso uma imposição quanto à sua unidade de ação (enredo), onde uma situação centraliza todos os acontecimentos da história; em uma unidade temporal, especialmente no caso do conto, a história se desenvolve em curtos intervalos de tempo; em uma unidade de lugar, a ação acontece em um âmbito geográfico e social restrito.

Em comparação à narrativa clássica, a autora expõe que a narrativa moderna e/ou contemporânea rompe a unidade existente naquela estrutura. E, por esta razão, quando o escritor atribui diferentes ações em diferentes espaços a personagens multifacetadas, esta forma de narrativa transcende os limites do tempo e lugar, Cardoso afirma que fazem parte da narrativa os seguintes elementos: enredo (ação ou trama), personagens, tempo, espaço, ambiente, narrador.

Narrador Antes de tomar-se o estudo sobre definição do papel do narrador como um dos elementos da narrativa, cabe esclarecer a diferença entre os termos narração e narratividade. Narração caracteriza a emissão do narrador. No filme documentário, como exemplo, isto se dá por meio da voz em off ao explicar o que está sendo mostrado na seqüência. Em oposição, temos na literatura o gênero drama, onde não há a figura do narrador e, portanto, a ação se explica pelas próprias personagens, nestes casos não existe narração, mas trata-se também de um gênero narrativo. Pelo termo narratividade entende-se a característica dos textos que são narrativos, ou seja, trata-se do potencial narrativo do texto.

“O narrador é o elemento textual que conta a história” (Cardoso, 2001, p.36), por estas palavras o autor afirma o papel do narrador enquanto elemento responsável pela interação com o leitor no processo de recepção. Convém ressaltar que não se deve aceitar o narrador como sendo o autor, uma vez que ele é um elemento textual, e portanto uma criação lingüística do autor. O narrador somente existirá no texto, ele narra a partir do interior do relato, enquanto o autor escreve, desenvolve uma atividade externa em relação ao texto.

Segundo Barthes, “...o autor (material) de uma narrativa não se pode confundir com o narrador dessa mesma narrativa...”, “Distinção tanto mais necessária, à escala que nos ocupa, quanto, historicamente, uma massa considerável de narrativas não tem autor (narrativas orais, contos populares etc.)” (Barthes,198?, p.121), mas apesar da ausência de uma autoria reconhecida nessas narrativas a figura do narrador é que, muitas vezes, conduz a história.

Embora exista uma clara distinção entre narrador e autor, em certos momentos na literatura, alguns autores se inserem nas próprias narrativas e dialogam diretamente com seus leitores por meio de sentenças como “Meu caro leitor...” ou “O que o leitor está pensando...”, propondo uma postura reflexiva durante o processo de recepção. Shakespeare é um exemplo de autor em cujas peças a relação autor/receptor é bastante clara (ver: STAM, Robert, Reflexivity in Film and Literature, New York: Columbia University Press, 1992).

Outro exemplo dessa “intromissão” do autor é o livro de Laurence Sterne, em The life and opinions of Tristram Shandy, onde, utilizando recursos literários e de diagramação (páginas “cegas”, caracteres como **** ou ——— ) o autor convida o leitor a intervir na narrativa com suas opiniões e pensamentos.

Neste caso, a figura do narrador seria mais bem representada como um “ventríloquo” criado pelo autor a fim de manipular a sua narrativa, utilizando sua própria “voz”: é dele, do autor, a visão dos fatos.

No âmbito do design e sua intervenção na literatura, o designer torna-se capaz de fazer uso dos próprios códigos – espaços vazios, ritmo da mancha gráfica, escolha tipográfica etc. – estabelecendo essas relações entre a obra e leitor e, deste modo, atuando na geração de sentidos da própria narrativa.
Nos textos em que a história se desenvolve por meio das falas dos próprios personagens, não existe a necessidade de um narrador, como por exemplo: o drama. Narrativas que se desenvolvem sem a presença de um narrador são encontradas no teatro e também no cinema. Às vezes, em ambos os casos poderá surgir a necessidade, num ou em outro momento, de uma ligatura que aparecerá como a “voz” de um narrador.

No teatro esta ligatura pode ser representada por uma mudança de cenário, assistida pela platéia.

No cinema, ocorre onde a seqüência não é suficiente para expor o que a narrativa pretende e, nestes casos, são utilizadas informações adicionais que situam o leitor num novo ambiente ou numa mudança temporal na história. Estas “legendas” ou letreiros apresentam, por exemplo, o ano e/ou o lugar onde a ação está sendo desenvolvida. No filme As horas (The hours), de Stephen Daldry (2002), são utilizadas “legendas” indicando a troca de cenas das três personagens que participam da narrativa em seus diferentes tempos e espaços – arredores de Londres, 1923 (Virginia Woof – Nicole Kidman); final do século 2000 (Clarissa Vaughan – Maryl Streep); Los Angeles, 1951 (Mrs. Brown – Julianne Moore). 

Deste modo, o diretor apresenta as personagens e, simultaneamente, cenários com suas identificações geográficas e temporais. A partir do momento em que o espectador reconhece os três tempos históricos da narrativa, os letreiros são retirados e a compreensão se faz pelas próprias personagens, cenários e ações.

No sistema de comunicação, isso equivaleria aos “reforços de sentido” que podem corrigir a distorção em um discurso. Um desses “reforços” pode ser a redundância, esta pode existir no trabalho do design a partir da presença de elementos que, em vez de agregarem uma nova informação, fortalecem o sentido de um dado já apresentado. Ex.: nos sistemas de sinais luminosos, o reforço se dá com a repetição e simetria no uso de semáforos no alto e também nas laterais esquerda e direita da via urbana. A informação, neste caso, é a mesma – vermelho: pare – mas diante desta redundância tem-se uma garantia maior da compreensão da mensagem. Outro reforço de sentido, muito utilizado na ilustração e animação é a ênfase, o exagero de algumas características, olhos maiores na face das personagens, ou o apagamento de outras privilegiando aquelas que se deseja ressaltar.

Foco narrativo O narrador pode contar uma história tanto do ponto de vista de quem assiste, quanto daquele que participa da narrativa. Ao participar dos fatos, o narrador desempenha, também, uma ação específica na narrativa: “Decorre daí a distinção tradicional entre narrador na primeira pessoa (aquele que exerce uma função na ação) a narrador na terceira pessoa (aquele cuja função se restringe à interpretação dos fatos)” (Cardoso, 2001, p. 37).

No texto em primeira pessoa, o narrador é também uma personagem. É comum a utilização do narrador na condição de protagonista da narrativa, como um recurso “que revela-se especialmente adequado para o devassamento da interioridade da personagem nuclear do romance, uma vez que é essa mesma personagem quem narra os acontecimentos e que a si própria de desnuda” (Silva, in: Cardoso, 2001, p. 37) O quadro abaixo sistematiza as diferentes atuações do narrador:

Cardoso, expõe dois exemplos muito claros para ilustrar esta estrutura: “Vai então, empacou o jumento em que eu vinha montado; fustiguei-o, ele deu dois corcovos, depois mais três, enfim mais um, que me sacudiu fora da sela,...” “mas um almocreve, que ali estava, acudiu a tempo de lhe pegar na rédea e detê-lo, não sem esforço nem perigo. Dominado o bruto, desvencilhei-me do estribo e pus-me de pé.” (Machado de Assis, Memórias Póstuma de Brás Cubas, 1996, p.40-41).

Não há dúvida para o leitor de que este fragmento do texto encontra-se em primeira pessoa, uso que ao longo da narrativa servirá de recurso para que ele conheça de forma irrestrita os pensamentos da personagem/narrador.

O autor também estabelece a diferença dessa atuação em relação ao narrador em terceira pessoa apresentando o seguinte exemplo:

“Os criados serviram o café. E como havia já três longas que estavam à mesa, todos se ergueram, acabando os charutos, conversando na animação viva que dera o Champagne. A sala, de teto baixo (...) enchera-se de um calor pesado.” “Carlos e Craft, que abafavam foram respirar para a varanda; e aí recomeçou logo, naquela comunidade de gostos que os começava a ligar, a conversa da Rua do Alecrim sobre a bela coleção dos Olivais.” (Eça de Queiroz, Os Maias, 1996, p. 106).

Entretanto, nem sempre o foco narrativo se apresenta ao leitor de modo bem definido. Roland Barthes, em A aventura Semiológica, define o código do narrador em dois sistema de signos: pessoal (eu) e a-pessoal (ele). Segundo Barthes, em algumas narrativas ou episódios, podem existir textos escritos na terceira pessoa (ele), quando na verdade se trata de uma ação na primeira pessoa: “toda parte inicial de Goldfinger, embora escrita na terceira pessoa, é de fato, dita por James Bond; para que a instância mude, é necessário que o rewriting (substituindo ele por eu) seja impossível; assim a frase: ‘avistou um homem de uns cinqüenta anos, de porte ainda jovem, etc.’ é perfeitamente pessoal, apesar do ele (‘Eu, James Bond, avistei, etc.’), mas o enunciado narrativo ‘o tilintar do gelo contra o vidro pareceu despertar em Bond uma brusca inspiração’ não pode ser pessoal, por causa do verbo parecer, que se torna signo de a-pessoal”. (Barthes, 198?, p.120).

Tempo “A relação entre o tempo e a narratividade indica que os eventos são marcados por estados que se transformam sucessivamente” (Cardoso, 2001, p.35). Segundo o autor, os eventos que constituem o texto narrativo passam de um estado a outro, são acontecimentos que sucedem no tempo. Enquanto, num texto descritivo a ação se localiza no espaço. Mas, esta polaridade não existe de modo tão limitado e ocorre que: “Na verdade, a descrição, a narração e a dissertação articulam-se freqüentemente, em um único texto, havendo, no entanto a prevalência de uma delas.” (Cardoso, 2001, p.38).

Sendo o texto narrativo representação da passagem de um estado a outro, cada subconjunto
“O” desse acontecimento principal torna-se um quadro à parte e por si traduz uma descrição. Para Cardoso, isto pode ser compreendido do seguinte modo: “...quando se faz uma comparação com um recurso da indústria cinematográfica que permite parar a imagem num ponto qualquer da cena. Ao parar a imagem, o que se vê é um quadro inserto no contexto mais amplo da narrativa. Além disso, os eventos passam-se num espaço que deve ser caracterizado, isto é, descrito.” (Cardoso, 2001, p.38)
A partir de citação da obra de Vitor Manuel Silva, o autor apresenta uma subdivisão do tempo da narrativa nos cinco tempos definidos abaixo:

• tempo histórico – tempo histórico que a História se refere; “é o tempo maior que abrange todos os acontecimentos humanos no período em que ocorrem os fatos narrados”. Nem sempre o tempo histórico de uma narrativa coincide com o seu tempo concreto. Um exemplo a ser citado é o livro O nome da rosa, de Umberto Eco: apesar do romance narrar fatos ocorridos numa abadia italiana, no séc. XIV, foi escrito em 1980, sendo o séc.X, portanto, seu tempo concreto. Em muitas narrativas consegue-se identificar o momento histórico a partir de elementos do texto/imagem que dão “dicas” sobre ele (mesmo que não se apresente uma data específica ao leitor/espectador).

• tempo-cronologia – tempo que transcorre na ordem dos fatos (começo Æ fim); “chama-se cronológico porque é mensurável em dias, meses, anos, séculos”. A relação entre o tempo histórico e o tempo-cronologia pode ser observada no filme As horas, onde as ações se desenvolvem em tempos históricos distintos (1923, 2000 e 1951), mas, possuem o mesmo tempo cronológico: um dia na vida das três personagens. A saga, por exemplo, é uma narrativa de grande tempo cronológico.

• tempo concreto – momento específico onde ocorrem os fatos; “age sobre os indivíduos que estão fora do texto” (autor, leitor). É o tempo que atua na criação narrativa e no processo de fruição; nesse universo dos indivíduos concretos, no qual o tempo concreto atua, também está presente o leitor.

• tempo como durée – tempo que modela e transforma os agentes; “atua sobre os personagens”, enquanto o tempo concreto atua nos indivíduos. Tempo de duração do evento e pode ser demostrado por um movimento na cena. Um exemplo, citado durante o seminário, teria sido apresentado por Umberto Eco no Pós escrito ao Romance O nome da rosa, onde este autor explica que construiu toda a narrativa calculando o tempo de leitura a partir da planta baixa da Abadia. Deste modo, Eco dá a dica do tempo na narrativa, ou seja, de quanto tempo está durando o desenvolvimento da cena.

O tempo como durée não deve ser confundido com o “timing” que seria uma duração que cada autor utiliza para o seu relato e que, portanto, estaria mais bem caracterizado como um estilo de cada autor e de cada narrativa. Ex: o “timing” do conto, o “timing” do romance, o “timing” da piada.


• tempo psicológico – tempo que apresenta uma ordem submetida à vontade do narrador e dos personagens sem qualquer coerência cronológica. A partir da consciência do narrador, propõe “sobretudo uma experiência do tempo tratado como objeto de consciência, incrustado numa memória” (Gancho, in Cardoso, 2001). No filme Spider, de David Cronenberg (2002), a maior parte das ações que envolvem a personagem central não é passível de identificação cronológica, o tempo na narrativa se desenvolve por meio de sua (dele) própria consciência.

Segundo Paul Ricoeur: “há um Tempo Mítico, ‘a priori’. Tempo das colheitas, das luas, das mares. Tempo que existe antes de pensarmos nele”. Entretanto, foi preciso dimensionar o tempo e assim criou-se o tempo do calendário. Este se constrói em única linha reta (uma direção), um ponto de partida (a data 0) e dois sentidos ( + e - ). Os fatos reais vivem sob este domínio, sendo dimensionados em passado, presente e futuro. Nele existem os tempos históricos, datas, períodos, contextos sociais, políticos, etc. Pode-se imaginar, então, vários conjuntos de tempos históricos inseridos num conjunto maior, o tempo do calendário.

Inserido no tempo histórico existe um novo conjunto, o do tempo concreto de uma pessoa, que pode estar vendo um filme, lendo um livro ou passeando por um site. Enfim, esta pessoa, está inserida em um tempo concreto, dentro de um tempo histórico, “assistindo” a uma narrativa.

A partir das considerações de Ricoeur, compreende-se o tempo dureé como tempo de duração.

Tempo de duração de uma personagem, que não tem tempo concreto, mas sim um tempo existente dentro da história, ao findar a narrativa ele finda também. Um exemplo da existência das personagens num tempo dureé pode ser observado em O ano passado em Marienbad (1961), de Alain Resnais, onde as personagens existem apenas dentro daquela narrativa, são “objetos” destinados a ela. Suas vidas não existem nos momentos antes ou depois da narrativa, as suas existências se restringem ao instante em que dura a projeção na tela.


Quanto ao tempo psicológico, para Ricoeur ele não é nem real, nem fantasia – passa pelo sonho, ele transcende o calendário, chega ao tempo mítico. Não conseguimos dimensionar nosso pensamento, nossos anseios que hora parecem tão longos apesar de no tempo real não passarem de um segundo, apenas.

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